A humanidade tem uma relação estranha com os elementos mais obscuros de sua história. Enquanto alguns argumentam que devemos consignar nossos maiores erros ao passado para avançar, outros acreditam que ignorar, ou recusar-se a reconhecer, nossas transgressões desonra aqueles que sofreram - e nos deixa vulneráveis a repeti-los. Este debate encontrou uma recente polêmica na Áustria, onde o governo nacional anunciou a sua intenção de demolir uma casa amarela aparentemente insignificante na cidade ribeirinha de Braunau am Inn - uma casa que, apesar de sua fachada despretensiosa, ficou conhecida como local de nascimento de Adolf Hitler.
A infeliz associação de Braunau com o ditador austro-alemão começou com seu nascimento em 20 de abril de 1889. Quarto filho de Alois e Klara Hitler, ele passou apenas três anos na casa de seu nascimento antes de se mudar para a cidade de Passau do lado alemão do rio Inn. O fato de sua passagem em Braunau ter sido tão breve não contribuiu muito para dissuadir fanáticos que, desejando ver o local de nascimento de Hitler, elevaram sua antiga casa em Braunau a um status de "local de peregrinação" já na década de 1930. Quando Braunau foi ocupadaa pelo exército dos Estados Unidos em 1945, foi a intervenção americana que impediu um grupo de soldados alemães de destruir a antiga casa do ditador, recentemente falecido.
Mais de sete décadas depois, a maioria dos moradores de Braunau desejava que os americanos não estivessem no caminho da destruição da casa. Sua presença no coração de sua cidade é um lembrete constante de um legado que lhes envergonha; o fato da casa ter sido regularmente visitada por sucessivas gerações de simpatizantes nazistas, especialmente nos aniversários do nascimento de Hitler, é, com efeito, uma grande fonte de desgosto. Os temores sobre essa tendência levaram o governo austríaco a aceitar o contrato de arrendamento do edifício em 1972, após o qual ele serviu a muitos usos, de museu, a escola, biblioteca e sede de uma organização de apoio a pessoas com deficiência.
Nos últimos anos, no entanto, a própria existência da casa foi colocada em perigo. Continuamente frustrado pela recusa do proprietário em renovar o edifício e desconfiado de seu status de santuário do nazismo, o governo austríaco tomou posse da casa em julho e começou a deliberar sobre seu possível destino. Embora o assunto ainda necessite de uma votação parlamentar, prevê-se que o edifício será demolido e substituído por uma nova estrutura.
A decisão iminente reabriu um debate inconcluído desde 1945. Aqueles que preferem ver a casa destruída citam seu apelo aos neonazistas como um ímpeto para a ação, uma chance de golpear simbolicamente aqueles que continuam a ecoar o ódio incitado por seu ídolo. "A minha ideia é destruir a casa", disse Wolfgang Sobotka, Ministro de Ações Internas da Áustria, que mencionou explicitamente seu desejo de erradicar o que se tornara um "local de culto" para os neonazistas. Outros, incluindo o vice-chanceler Reinhold Mitterlehner, preferem ver a casa transformada em um museu que educaria as gerações futuras sobre os perigos do extremismo radical.
O berço de Hitler é apenas um dos muitos locais ligados às atrocidades da Segunda Guerra Mundial que enfrentam controvérsias desta natureza. Na Polônia, o memorial de Auschwitz-Birkenau (anteriormente um campo de concentração controlado pelos nazistas), juntamente com um extenso catálogo de artefatos do Holocausto, está sob um programa contínuo de restauração, a fim de manter a autenticidade do local e, segundo as palavras da organização No entanto, a decisão de preservar Auschwitz não é apoiada por todos, e mesmo aqueles que acreditam que o local deveria permanecer intacto estão fechados em um debate em curso sobre a questão da reconstrução de partes do memorial que, apesar dos esforços de preservacionistas, estão se deteriorando rapidamente.
Outra relíquia arquitetônica desse período pode ser encontrada ao sul: o Palazzo della Civiltà Italiana, um edifício de galeria originalmente erguido para abrigar uma exposição nacional comemorando as realizações da Itália fascista sob o governo de Benito Mussolini. A exposição, no entanto, nunca ocorreu (devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial) e o palácio acabou por ficar vazio durante décadas. Embora o ditador italiano não tenha a mesma fama de Adolf Hitler, a associação do edifício com seu governo autoritário levou a uma controvérsia semelhante em 2015, quando o palácio foi renovado para se tornar a nova sede da Fendi. A casa de moda, juntamente com seus partidários, argumentou que a arquitetura marcante e minimalista do palácio era um símbolo não do fascismo, mas do compromisso da empresa com sua Itália natal. O crítico de arquitetura Owen Hatherley, entretanto, proclamou que, embora a própria arquitetura possa ser esteticamente agradável, sua criação por mentes torcidas significava que ela era, e deveria estar, "contaminada".
Do outro lado do Atlântico, debates semelhantes começaram quase antes de a poeira baixar após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Menos de um mês após a tragédia, pessoas de todo os Estados Unidos - e de fato, em todo o mundo - começaram a expressar uma diversas opiniões sobre o que deveria ser feito no local onde antes se localizam os edifícios do World Trade Center. Alguns argumentaram que o complexo original deveria ser replicado exatamente, uma idéia ridicularizada por outros como uma forma absurda de negação na esteira de uma devastação muito real. Embora a preservação dos edifícios originais não fosse possível, a luta para encontrar um equilíbrio entre deixar no passado um momento doloroso na história da humanidade e respeitar as vidas perdidas naquele momento histórico é quase a mesma.
Até que o governo austríaco tome sua decisão final, o futuro do berço de Hitler permanece incerto. Mesmo assim, uma vez que um veredicto for concordado, é pouco provável que o debate termine - e pode, de algum modo, ficar ainda mais intenso. Se a despretensiosa casa amarela em Braunau for derrubada ou não, as atrocidades cometidas por um de seus antigos moradores não serão - e não podem - ser apagadas da história. O que os líderes da Áustria devem decidir é se devem apagar uma imagem ligada a uma das figuras mais infames da história, ou preservar seu lugar de nascimento como um lembrete de que suas ações nunca deverão ser repetidas.
Em frente à casa há uma pedra com a inscrição:
Für Frieden Freiheit und Demokratie. / Nie wieder Faschismus. / Millionen tote mahnen. [Pela paz, liberdade e democracia. / Fascismo nunca mais. / Milhões de mortos nos advertem.]
No cabo, é o respeito ao legado, não o de Adolf Hitler, que complica este debate. Saber se o legado será mais respeitado através da destruição do símbolo ou de sua solene preservação é uma dúvida que permanece controversa.